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315 estórias

Monday, October 22, 2012

A Relíquia Colegial


Comandante Guélas

Série Colégio Militar


No Spell e King as tochas eram feitas com os cadernos e as cábulas dos finalistas, os graduados faziam o “balanço do ano lectivo” com os sucessores, e entregavam-lhes a relíquia que só poderia ser usada quando tivessem as divisas nos ombros: um molho de chaves que dava acesso a todos os recantos do Colégio Militar! A todos? A todos, não! A missão dos novos responsáveis era juntarem mais algumas, para que a próxima geração conseguisse chegar ainda mais longe. E uma delas foi longe demais!
A noite ainda era uma menina, mas o Zimbório já estava às escuras. De vigilantes nem sinal, e os praças destacados para vigiar o paiol que, segundo a lenda, se situava por baixo dos claustros, roncavam noutro local. O oficial de dia mantinha a tradição, vigiava dormindo, lá para os lados das companhias, que o digam o 191, o Horrível, o 224 e o Vinasse, que tantas vezes deslocaram o canhão das fotos da praxe para junto da janela aberta do gabinete, por onde entrava o cano que ficava sempre colado à cabeça do dorminhoco. A fúria era geralmente muita, não se sabe se por bater com o coco no dito, após monumental cagaço, ou por não ser capaz de pôr no lugar, sozinho, o mais rapidamente possível, a prova da sua desatenção. Quando o Rato rodou a maçaneta da porta do Diretor ela abriu-se, sinal de que no molho das chaves que tinham sido colecionadas ao longo de muitos anos, num penoso trabalho de formiga, constava agora a do gabinete do chefe máximo. O facto assemelhava-se à conquista do Evereste, pela primeira vez alguém ousava penetrar no local mais inexpugnável do Colégio Militar, sem ser obrigado ou convidado. O Peidão já tinha lá estado, devido à primeira opção, para tomar conhecimento da sua pena de detenção durante a primeira semana das férias da Páscoa, um segundo castigo para um só “crime”, porque o primeiro já tinha sido aplicado umas semanas antes na primeira companhia, após o jantar, em sentido em frente ao grupo de execução constituído por três graduados, que tinha sido incumbido de aplicar a pena de várias festinhas cada um, bem aviadas como era tradição, e tudo isto porque durante o último tempo letivo do dia anterior fora encarregue de manter a disciplina do 1º E (turma que aparecera por geração espôntanea no segundo período, constituída por 6 alunos do 1º A, 7 do 1º B, 7 do 1º C e 6 do 1º D) devido à falta do professor, e o oficial de dia, o tenente Aparício, ameaçara-o de umas bordoadas, bem aviadas como também era tradição, caso ouvisse barulho, coisa que o 289 insistiu em fazer, tendo sido castigado com um banho de Óleo de Fígado de Bacalhau, remédio da moda, presente em cápsulas na maioria das carteiras. Quando chegou à Companhia o  413 sentiu-lhe o cheiro a texugo, e no momento em que se preparava para arriar-lhe por “javardice”, o Stratopel, que tinha entrada por cunha por ser desaparafusado, contou-lhe ter sido vítima de “bullying farmacêutico”.
- Um ato grave de barbárie, - disse o graduado aos colegas.
- O puto tinha tantos atos legais à disposição, firmeza, murros, biqueiros, chapadas, mas foi logo escolher uma pena que atenta contra os Direitos Humanos Colegiais! – Interveio o 434.
- Merece pena máxima e execução imediata, - gritou o Piscas.
- Óleo de fígado de bacalhau? Isto é um insulto às tradições colegiais! – Exclamou o 413.
 Acusação: “despotismo”! Pena: “ação de…despotismo”! E o Diretor achou que a visita de cortesia do réu ao Hospital Militar tinha sido irrelevante e, depois de mostrar aos pais todos os seus diplomas que o confirmavam como um chefe justo, toma lá mais um castigo! Eram assim as regras, e não consta que o Peidão tenha ficado traumatizado. A festa estilo árabe ficou-lhe entranhada nas memórias, para mais tarde recordar, principalmente quando dava de caras com meninos traumatizados por lhe terem roubado um Bolicao, e que eram capas de jornais. Mas voltemos ao Zimbório, mais propriamente ao gabinete do Diretor. Os heróis, que em vez de terem ido divertir-se para o “Ricochete”, o café da zona, após terem sido autorizados pelo graduado do pelotão a encetarem uma fuga, que começava nas janelas altas da zona dos lavatórios, tinham-se arriscado a penetrar na única zona que nem em pensamentos alguém ousara entrar, desde a fundação. E como prova do feito, trouxeram umas estrelas que estavam em cima de um altar, dentro de um pequeno recipiente destinado às hóstias, que foram guardadas numa caixa de costura dourada, parte integrante do enxoval colegial. Quando no dia seguinte o Diretor se preparava para colocar as ditas de prata, uma prenda da filha, e só apalpou o pó do gabinete, sentiu de imediato o fluxo sanguíneo dilatar-lhe as veias, os movimentos cardíacos e respiratórios aceleraram-se, os músculos contraíram-se, a boca entreabriu-se, o rosto ruborizou-se, os dedos grandes dos pés reviraram-se, foi envolvido por súbitos clarões, fragmentos curtos de relâmpagos, fantasmas reais, que o transformaram a preto e branco, com muito grão, num espectro psicótico.

- Mayday, red alert! – Gritou o chefe máximo desesperado.

Pôs o Colégio em "DEFCOM 1” e mandou formar o batalhão. Estavam suspensas as saídas até os responsáveis lhe devolverem as estrelas que tanta graxa…, perdão, trabalho, lhe tinham custado. No íntimo apetecia-lhe aplicar uma firmeza geral, pô-los de cócoras até ao nascer do sol, altura em que os rabos já estariam tão vermelhos como os dos babuínos devido às biqueiradas sem fim; ou uma apresentação à alvorada no seu gabinete de pano-cotim-pano-cotim-pano…o dia todo; ou um “abrir fileiras…marche”, para poder distribuir bolachada até que os culpados cuspissem as estrelas. Não podia, iria dar muito nas vistas, sempre negara a existência destas práticas quotidianas, que obrigavam os oficiais de dia a esconderem-se nos gabinetes à noite, altura em que o batalhão ficava entregue a si próprio.
- Vou chamar a Polícia Judiciária Militar! – Ameaçou.
Iria ser quebrada uma tradição secular, alguém do exterior viria tentar resolver um problema interno, e que interno deveria continuar. Foi o suficiente para fazer os “heróis” darem um passo em frente. O Colégio Militar não merecia ser enxovalhado por umas estrelas foleiras!

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